terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

As loterias são justas?

Já há algum tempo os economistas tem se debruçado sobre a microeconomia da redistribuição. É um tema muito importante, porque ajuda a entender porque os governos democráticos são mais ou menos redistributivos. Via de regra o que se sabe é que as preferências variam de acordo com diferentes grupos sociais: i) os mais ricos tem aversão à distribuição; ii) as mulheres são mais favoráveis; iii) o efeito da educação, em geral negativo, é ambíguo por causa das ideologias de esquerda que favorecem; iv) é menos favorável naquele com expectativa de aumento de renda e otimista; v) negros a preferem mais do que os brancos, assim como os desempregados; vi) jovens e idosos preferem distribuição, quando comparado às pessoas de meia idade; vii) pessoas com histórico de dificuldades nos últimos anos (desemprego, doença, morte e separação) preferem a redistribuição; viii) ser de família religiosa favorece a redistribuição; ix) viver em contexto de crime e desigualdade também favorece; x) por último, depende de como as pessoas atribuem o sucesso, como se proveniente da sorte ou do esforço. Além da questão das escolhas, não se pode esquecer que mesmo os mais ricos podem defender algum grau de redistribuição, tendo em vista as externalidades educacionais e de segurança que produz.
As loterias se impõe como um desafio teórico para as modelagens microeconômicas. Se assumirmos que não há corrupção, pode-se dizer que são justas sob certo prisma, porque todos concorrem de forma igual. Pobres ou ricos, brancos ou negros, homens e mulheres todos são igualados pela aleatoriedade dos números. Por isso não se vê críticas de que alguém ganhou o prêmio injustamente. Como diz um dos motes da loteria brasileira, "para a sorte todo mundo é igual". A campanha publicitária da Caixa Econômica Federal, deste modo, abraçou a ideia de que apostar na loteria é uma ação livre da desigualdade e aberta a todos de forma transparente.
Mas a loteria é, em si, um instrumento de desigualdade. Ela piora o Índice de Gini, que avalia a má distribuição de renda, porque ao invés de aproximar o indivíduo sorteado para a média de renda da população, coloca-o, provavelmente, ainda mais distante do ponto central — ainda que em outra direção. De forma estranha, a loteria promove a desigualdade de forma justa, mesmo que por meio de um mérito curioso, a pura sorte.
A ideologia capitalista vende a ideia de que o sucesso das pessoas se baseia no trabalho e no esforço. O papo por vezes furado não convence e muita gente pensa diferente, acreditando que as pessoas que enriquecem ou se dão bem assim o fazem porque possuem algum privilégio — são herdeiros, têm cônjuges ricos, parentes abastados ou acesso aos círculos de poder, além da oportunidade e imoralidade de se corromperem — ou simplesmente são sortudas.
Como vimos, pessoas que atribuem o sucesso em um grau maior à sorte e não ao esforço são mais favoráveis a redistribuição. Nesse caso, seriam elas contra as loterias, por que são instrumentos de concentração de renda? Parece-me que não. Esse tipo de gente, é provável, é contra a injustiça mais do que a má distribuição dos recursos. Deseja-se redistribuir para consertar as injustiças do sistema. Mas se existe algum método legítimo de concentrar renda, talvez ele não seja condenável ou possa ser até mesmo desejável, desde que justo.
O mesmo raciocínio talvez possa ser estendido aos outros grupos sociais que são favoráveis a uma melhor redistribuição. Pobres, mulheres, negros, desempregados e jovens, por exemplo, podem preferir a redistribuição pela via da defesa de uma sociedade mais justa com oportunidades menos desiguais, e não por uma defesa da igualdade de renda dos cidadãos. A luta talvez seja pelas regras do jogo e não por seus resultados. Isso quer dizer que ao defenderem a redistribuição, estão, em verdade, defendendo melhores oportunidades de acesso a um grau superior na escala social. A loteria é uma oportunidade aberta a todos.
E o raciocínio inverso talvez seja válido. Brancos, homens, ricos, empregados e profissionais experientes são em maior grau contrários à redistribuição por concordarem com as regras atuais do jogo e as considerarem justas. Talvez esse grupo seja crítico das loterias, por promoverem um método de desigualdade baseado na sorte, que consideram inválido. Pessoas que acreditam nos méritos efetivos do seu sucesso não querem que alguém suba a escala social por pura sorte, por considerarem tal via "injusta", por mais estranho que tal argumento possa parecer, tendo em vista que qualquer um pode participar das loterias em condições iguais.
Novas pesquisas precisam confirmar essas hipóteses. Enquanto isso, resta-nos especular. Pessoas religiosas são a favor da redistribuição, mas provavelmente contra as loterias, por razões culturais. As religiões principais são críticas dos jogos e da vontade de alguém em enriquecer e ter sucesso. Mesmo assim podemos imaginar as vertentes neopentecostais afirmando a validade das loterias por serem justas e equivalentes a bençãos divinas.
Eu, particularmente, penso que a maioria das pessoas toleram bem a desigualdade de renda, em especial quando veem méritos nas diferenças. Aceita-se que alguém que trabalhe muito ganhe mais e tenha mais coisas do que alguém que trabalhe pouco e seja preguiçoso. São poucos aqueles que prefeririam uma igualdade rígida e as péssimas experiências de socialismo real apenas comprovam o lado ruim do rigor distributivo. Mas quase todo mundo quer ver um sistema justo. A sociedade se divide nesse ponto, pois achar que o mundo é justo depende muito de como você está inserido no sistema. Assim, a loteria, na opinião dos injustos, é um instrumento de concentração de renda justo .

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